quarta-feira, 4 de janeiro de 2012



          

       As Danaides eram cinqüenta filhas de Danao, rei de Argos. Seu irmão, Egito, tinha cinqüenta filhos. Mandou a filharada masculina casar com as primas. Danao não queria o casamento. Combinou com as filhas um plano.
          Os cinqüenta recém-casados tiveram a mais estranha noite de núpcias de que há notícias no mundo. Foram todos assassinados pelas esposas. Só escapou um, Linceu, poupado por sua mulher, Hipernestra.
          Júpiter condenou as Danaides às penas do Tártaro, que era o Inferno daquele tempo. As Danaides enchiam um tonel sem fundos. Séculos e séculos, sem pausa, sem descanso, sem interrupção, as moças carregavam água, despejando-a no barril furado.
         Teodoro de Banville contou o fim dessas Danaides, na "Lanterna Mágica". Os Titãs venceram os Deuses. O Tártaro ficou sem chefe, despovoado de sofredores, todos perdoados. Astério anuncia a terminação da sentença:
        - Acabou vosso suplício. Largai essa penitência. O tonel está cheio.
         As Danaides pararam, pela primeira vez, há milênios. Enxugaram a fronte, descendo as bilhas, infatigáveis. E disseram, confusas e desapontadas:
        - Está cheio o tonel? Pois bem! Que havemos de fazer?
        Já estavam habituadas com o trabalho contínuo, mesmo inútil.
        Não perguntem, pois amigos, por que escrevo sempre, com ou sem leitores, com ou sem compreensão, estímulo ou tolerância. Deixem-me com o meu barril sem fundo. A tarefa finda significaria o repouso incômodo, a displicência, a preguiça mortal.
         Por isso, mesmo sem ter ofendido Apolo, encho, obstinado e tranqüilo, a talha imperfeita, escondido num recanto de província. Quando não mais ouvirem o rumor da água agitada, não se dirá que Júpiter sucumbiu. Será que, para sempre, desfaleceu na Morte o braço humilde do trabalhador...

Luís da Câmara Cascudo, Seleta, págs. 178-1796.